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A trajetória de um acadêmico negro que voltou às raízes na Educação Básica para se reconectar com a sociedade

O historiador premiado Álvaro Pereira do Nascimento com uma de suas turmas: testemunho real de como o imenso abismo entre a universidade e o ensino básico pode ser estreitado. Arquivo pessoal, Author provided

No texto abaixo, exclusivo para o The Conversation Brasil, o historiador Álvaro Pereira do Nascimento - vencedor do prêmio Arquivo Nacional de Pesquisa com a obra “A ressaca da marujada: recrutamento e disciplina na Armada Imperial”, sobre a Revolta da Chibata e João Cândido, o Comandante Negro - conta como redefiniu sua existência acadêmica ao se desencastelar dos muros das universidades para levar conhecimento e, sobretudo, esperança de um futuro melhor, aos alunos do ensino fundamental de escolas públicas de bairros periféricos do Rio de Janeiro.


“A vida acadêmica paradoxalmente pode nos inserir em bolhas impenetráveis à maior parte da sociedade. Vamos nos envolvendo em nossas pesquisas, aulas e orientações na graduação e na pós-graduação, produção de artigos científicos, exercício de cargos administrativos… Quando nos damos conta, estamos numa bolha exclusiva para pesquisadores e estudantes, além de transformarmos em objetos de pesquisa o que está externo a ela.

Entrei numa dessas bolhas e quase flutuei somente entre os muros da academia. Mas a furei a tempo de refazer minha própria existência enquanto pesquisador acadêmico.

Entramos nessas bolhas por razões diversas (desde as mais mesquinhas, como o elitismo, até o altruísta desejo de salvar o mundo). No meu caso, há 12 anos, estar nessa bolha me levou a uma séria crise profissional.

Passei a não acreditar em minhas aulas. Discutia as recentes pesquisas na área de História do Brasil, e apresentava as metodologias e as teorias utilizadas para alcançar resultados acadêmicos. Contudo, eu era professor de um curso de formação de professores, como em quase totalidade das demais licenciaturas em História do país, mas não os ensinava a lecionar para crianças e adolescentes da Educação Básica, a carreira que mais recebe formandos e formandas.

Minhas pesquisas, mesmo em crise, ficavam mais apuradas com ótimos resultados, me levando a entrar no seleto grupo de Pesquisadores de Produtividade do CNPq. A desmotivação, contudo, passou a me acompanhar intensamente. Para piorar, minha sala de aula estava repleta de trabalhadores, que se tornaram estudantes no horário noturno, com reduzido tempo para leituras, fazendo das aulas algo ainda mais difícil.

O aproveitamento estava longe do desejado. Colegas relatavam a formação escolar mediana dos estudantes; outros, a falta de leitura por parte de estudantes trabalhadores etc., mas poucos questionavam a metodologia que ofereciam nas aulas.

Passei a pesquisar sobre o assunto, e a ter paciência e sensibilidade em sala de aula para realizar mudanças.

Quando cursava a graduação enfrentei o mesmo problema: trabalhava no horário diurno e estudava no noturno. Desde os 15 anos, consertava e instalava portões eletrônicos, interfones, máquinas de escrever eletrônica, computadores e impressoras, mas também fixava vasos de planta e quadros nas paredes e fazia reparos em eletrodomésticos. Minha mala tinha todo tipo de ferramenta, por isso, profissionais como eu se autodenominavam Zé da Mala.

Foram sete anos para graduar-me em História. Poucos docentes foram sensíveis à luta que eu e outros trabalhadores e trabalhadoras (uma parte delas com filhos e maridos-hóspedes em casa) enfrentávamos para estarmos ali em sala de aula.

Mas também percebia a ausência de pontes entre a academia e a sociedade. Incomodava-me o descompromisso de acadêmicos e acadêmicas com as escolas da Educação Básica e os movimentos sociais. Algumas décadas depois, após cursar a pós-graduação e tornar-me historiador profissional, vi-me reproduzindo o formato de aulas da maior parte dos meus e das minhas antigas docentes da academia.

Além disso, mantive-me descompromissado com o extramuros universitário. Seis anos após conseguir meu emprego de professor universitário na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, a crise bateu à minha porta.

O início da mudança

Três educadoras negras e uma experiência numa escola pública carioca foram essenciais para resgatar minha alegria na atividade acadêmica: elas me ajudaram a arquitetar e a construir as pontes entre minha ação universitária e a Educação Básica.

A maravilhosa dupla de educadoras Azoilda Trindade e Janete Ribeiro, além de Giovana Xavier, ensinaram-me que meus monólogos e formatos de aula não formariam bons professores e professoras para a Educação Básica, com crianças e adolescentes pertencentes à geração Z.

Além disso, havia a implementação de cotas raciais e sociais na universidade pública e o aguçamento das lutas contra o racismo, o machismo, a homofobia e a transfobia. Li boa parte do indicado por elas e fiz várias experiências após observá-las e ouvi-las.

A partir daí, música, teatro, jogos, aulas em sítios históricos, oficinas, dança, diálogos com famílias e legislações da Educação tonaram minhas aulas mais vibrantes e próprias para a formação de docentes da Educação Básica. Essa prática se renova a cada semestre ou a cada ano, e está diretamente ligada à história que passo a contar.

Faltava agora a minha própria experiência de contatar diretamente a Educação Básica, olhar nos olhos de crianças e adolescentes de maioria negra.

Tive essa oportunidade no Colégio Estadual Cidade de Lisboa, em Madureira, subúrbio do Rio de Janeiro vizinho ao bairro em que me criei. Havia, sem dúvidas, um retorno às origens remexendo a memória e as emoções.

Nesta escola, o professor Sandro Vinicius convidou-me para realizar uma palestra ao lado da jornalista Isabela Reis. O tema foi o mês da Consciência Negra. Minhas memórias vieram à tona intensamente. Falei que daquela estação de trem de Madureira diariamente partia para trabalhar como técnico eletrônica e de como fui ampliando meus horizontes e metas até tornar-me professor universitário.

Entre esses dois pontos de saída e de chegada, recheei a história apresentando as diversas cidades brasileiras e internacionais visitadas por mim a trabalho, como Buenos Aires, Lisboa, Chicago e, especialmente, Evanston, nos EUA, onde fui professor visitante na Northwestern University.

Aos olhos de acadêmicos profissionais, esse é um cotidiano recorrente, mas não o é para adolescentes periféricos, que poucas vezes saíram dos seus próprios bairros. Ao me ouvirem, aqueles e aquelas estudantes observaram que um ex-morador de Turiaçu, negro, ex-Zé da Mala, e filho de uma família pobre, realizou aquele percurso. Por que eles e elas não poderiam inspirarem-se e seguirem à frente?

Faltava, contudo, informar que minha história não era para ter acontecido. Naquela oportunidade, em novembro de 2018, ainda no calor da emoção, postei no Facebook:

"Falar para jovens negros em imensa maioria sobre o assunto foi uma das minhas maiores experiências, enquanto intelectual negro. Mostrei a eles todas as barreiras enfrentadas, expliquei como o sistema racial violenta, desencoraja e fecha caminhos, e por que eu sou alguém que não era para estar ali. Que a semana sirva para nos conscientizaremos de tomar (isso mesmo, tomar, por que o sistema não garante direitos ratificados na constituição à população negra e pobre) o que deveria ser nosso também. Já estamos dando passos, e isso faz eles quererem nos "abater” ainda mais, agora com “snipers”. Mas nossa jornada está só começando. Nenhum passo atrás! Podem me chamar às escolas que irei!“

Àquela época, o governador do Rio elegia-se prometendo matar criminosos com atiradores profissionais da polícia. Mas essa prática não foi exclusividade daquele governo, e sim de boa parte dos governos desde o fim da escravidão. O pós-abolição é o período no qual mais se matou e se mata pessoas negras de forma violenta no Brasil, e lá já se vão quase 140 anos.

Desde aquela postagem na rede social venho sendo convidado por colegas de diferentes escolas para apresentar essa palestra motivacional, oferecida por mim gratuitamente e com gastos próprios. Ela é uma das colunas que erigi para construir minha ponte entre a universidade e a Educação Básica. As ofereço para escolas públicas periféricas. Infelizmente, uma parte delas, por estarem em áreas comandadas por milicianos ou traficantes, exigem cuidados especiais, como entrar no bairro na carona de uma pessoa conhecida pelos criminosos, chegar em horários específicos etc.

Percepção de um ensino superior inalcançável

A expectativa desses e dessas estudantes quanto ao futuro escolar não ultrapassa o Ensino Médio. O Ensino Superior é desconhecido ou visto como inalcançável. Não sabem quais os critérios para alcançarem uma vaga, imaginam que a universidade pública é paga ou exclusiva para pessoas ricas.

Explico as possibilidades existentes oferecidas pelas universidades públicas, gratuitas e de qualidade, tais como ter professores doutores, acesso a bibliotecas e material didático, receber uma verba para manterem-se estudando, refeições a preços simbólicos, estágios, viagens e outros informes.

Quanto aos meus e minhas colegas da academia, não os cobro pela ausência das suas próprias pontes. Na maior parte das universidades públicas brasileiras nos vemos exercendo inúmeras funções. Nosso staff de apoio é quase inexistente. Além de professores e pesquisadores, somos licitadores, compradores, estoquistas, contadores, secretários e despachantes. Mesmo assim, nossos projetos aprovados e financiados por empresas de fomento à pesquisa enchem as bibliotecas da universidade de livros, compram aparelhos de ar condicionado para salas de aula, põem computadores nos laboratórios, abastecem escritórios com materiais de consumo diário, trazem bolsas de estudo para jovens pesquisadores(as) e desenvolvem produtos acadêmicos diversos e impactantes.

O que me leva a trabalhar ainda mais é lembrar que fui um jovem periférico. Sei que suas vidas podem valer quase nada para governantes e legisladores - e as quadrilhas de milicianos e de traficantes também os matam e os destroem. Esses jovens sofrem os efeitos do racismo e da péssima distribuição de renda no Brasil: não conseguem estudar (alimentação reduzida e/ou baseada em produtos baratos e ultraprocessados; sono irregular com o calor e mosquitos nos cômodos; excesso de pessoas na casa; cuidar dos irmãos menores etc) e formam-se com dificuldades.

Eles e elas trabalham em subempregos desde pequenos (ajudante do pai e da mãe em diversos ofícios, como os de pedreiro e faxineira; camelô; baleiro ou limpador de para-brisas em sinais de trânsito; vendedor de drogas a varejo; motoristas de aplicativos…). Tornam-se pais e mães no frescor da idade tendo de assumir responsabilidades antes de investirem e assumirem carreiras profissionais promissoras. E o pior, podem entrar para o crime, além de usar drogas pesadas.

Por isso sou tão preocupado com a formação de futuros professores, que podem diminuir a invisibilidade a pessoas negras e pobres nas escolas periféricas. Como disse certa vez a pensadora, intelectual e ativista Azoilda Loreto: _‘A invisibilidade é a morte em vida’. _

Acho que aprendi muito bem o conteúdo dessa aula. E daí, para encerrar, recorro ao magistral Caetano Veloso. Afinal, ‘Gente é pra brilhar, não para morrer de fome.’”

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